MAIS QUE COMPROMISSO PROFISSIONAL
O verdadeiro compromisso é a solidariedade, e não a solidariedade com os que negam o compromisso solidário, mas com aqueles que, na situação concreta, se encontram convertidos em "coisas".
Comprometer-se com a desumanização é assumi-la e, inexoravelmente, desumanizar-se também.
Esta é a razão pela qual o verdadeiro compromisso, que é sempre solidário, não pode reduzir-se jamais a gestos de falsa generosidade, nem tampouco ser um ato unilateral, no qual quem se compromete é o sujeito ativo do trabalho comprometido e aquele com que se compromete a incidência de seu compromisso. Isso seria anular a essência do compromisso, que, sendo encontro dinâmico de homens solidários, ao alcançar aqueles com os quais alguém se compromete, volta destes para ele, abraçando a todos num único gesto amoroso.
Pois bem, se nos interessa analisar o compromisso profissional com a sociedade, teremos que reconhecer que ele, antes de ser profissional, é homem. Deve ser comprometido por si mesmo.
Como homem, que não pode estar fora de um contexto histórico-social em cujas inter-relações constrói seu eu, é um ser autenticamente comprometido, falsamente "comprometido" ou impedido de se comprometer verdadeiramente.
No caso profissional, é necessário juntar ao compromisso genérico, sem dúvida concreto, que lhe é próprio como homem, o seu compromisso de profissional.
Se de seu compromisso como homem, como já vimos, não pode fugir, fora deste compromisso verdadeiro com o mundo e com os homens, que é solidariedade com eles para a incessante procura da humanização, seu compromisso como profissional, além de tudo isso, é uma dívida que assumiu ao fazer-se profissional.
Seu compromisso como profissional, sem dúvida, pode dicotomizar-se de seu compromisso original de homem. O compromisso, como um quefazer radical e totalizado, repele as racionalizações. Não posso nas segundas-feiras assumir compromisso como homem, para nas terças-feiras assumi-lo como profissional. Uma vez que "profissional" é atributo de homem, não posso, quando exerço um quefazer atributivo, negar o sentido profundo do quefazer substantivo e original.
Quanto mais me capacito como profissional, quanto mais sistematizo minhas experiências, quanto mais me utiliza do patrimônio cultural, que é patrimônio de todos e ao qual todos devem servir, mais aumenta minha responsabilidade com os homens. Não posso, por isso mesmo, burocratizar meu compromisso de profissional, servindo, numa inversão dolosa de valores, mais aos meios que ao fim do homem. Não posso me deixar seduzir pelas tentações míticas, entre elas a da minha escravidão às técnicas, que, sendo elaboradas pelos homens, são suas escravas e não suas senhoras.
Não devo julgar-me, como profissional, "habitante" de um mundo estranho; mundo de técnicos e especialistas salvadores dos demais, donos da verdade, proprietários do saber, que devem ser doados aos "ignorantes incapazes". Habitantes de um gueto, de onde saio significantemente para salvar os "perdidos", que estão fora. Se procedo assim, não me comprometo verdadeiramente como profissional nem como homem. Simplesmente me alieno.
Todavia, existe algo que deve ser destacado. Na medida em que o compromisso não pode ser um ato passivo, mas práxis - ação e reflexão sobre a realidade - inserção nela, ele implica indubitavelmente um conhecimento da realidade. Se o compromisso só é válido quando está carregado de humanismo, este, por sua vez, só é consequente quando está fundado cientificamente. Envolta, portanto, no compromisso do profissional, seja ele quem for, está a exigência de seu constante aperfeiçoamento, de superação do especialismo, que não é o mesmo que especialidade. O profissional deve ir ampliando seus conhecimentos em torno do homem, de sua forma de estar sendo no mundo, substituindo por uma visão crítica a visão ingênua da realidade, deformada pelos especialismos estreitos.
(FREIRE, Paulo - Educação e Mudança - págs. 23-26)